sábado, 25 de dezembro de 2010

Os Evangelhos Gnósticos

O que podemos pensar e acreditar acerca do Cristianismo? Sempre foi da maneira como se propaga hoje? Curiosamente versões diferentes do Cristianismo já existiam antes, não apenas nos nosso dias. Convido-o a ver o vídeo a seguir. Não chega a ter cinco minutos e serve para reflexão...

Eis a fonte (UOL) com o link: Evangelhos Gnósticos.

Enéias Teles Borges

terça-feira, 30 de novembro de 2010

O reino divino

São duas postagens oriundas do blogue Convictos ou Alienados? e que foram publicadas em novembro de 2008.

O reino divino - I

O reino divino não é desse mundo. Assim sendo ele transcende qualquer tipo de concepção escudada no pensamento humano. Não sendo daqui é praticamente impossível imaginá-lo à luz da compreensão dos homens que são finitos e tendenciosos.

Vencida a etapa da fé, ou seja, crer na existência de um ser superior, mister se faz considerar como seria esse reino.

Em geral o terráqueo projeta o reino de sua divindade com base no seu existir humano. Em cada época da história o homem imaginou um reino divino. Hoje acontece assim também. Afinal como seria o reino divino?

Caso a busca às respostas parta de dados estatísticos nós teremos milhares de formatos do reino divino. Cada reino teria hierarquia e leis coadunando com o seu similar terrestre. Fica muito difícil imaginar esse reino divino - isto para quem está de fora. Para quem está dentro de qualquer protótipo na terra não será complicado. Cada um tem um reino divino com vestimenta feita rigorosamente sob medida. Enfim: cada extensão na terra tem, no seu imaginário, a concepção exata do reino divino.

Curiosamente existem fontes antigas que apontam para tudo isso. São livros famosos e milenares, que sobreviveram a todos os tipos de ataques. Esses livros são os sustentáculos das muitas nuances da fé. Desses livros emergiram os grandes conglomerados de culturas religiosas, com destaque para o Judaísmo, Cristianismo, Islamismo. Ainda existem “n” culturas orientais e afins...

Esses grandes aglomerados deram origem a milhares de pequenas culturas da fé. Cada micro célula tem uma projeção, tal corte de alfaiate, que descreve, rigorosamente, o formato do reino divino.

O reino divino é maravilhoso! Todos querem morar nele e porque assim almejam vivem, ainda na terra, num ensaio geral. Esse ensaio é uma tentativa de viver por antecipação “um pedacinho do céu” que é o reino divino.

Quem não quer ser cidadão do reino divino?

A primeira etapa para quem quer habitar no reino divino é crer em sua existência. O segundo passo é complicado. Existem muitos protótipos do reino divino. Qual seria o verdadeiro? Como escolher?

O reino divino - II

Há duas opções para a escolha do reino divino. Uma é (a) pela comodidade resultante da tradição. O reino escolhido é justamente aquele no qual o fiel já está inserido. Ele é convencido ou convence-se de que o reino divino no qual se encontra é o reino verdadeiro. Julga-se um privilegiado. Enquanto bilhões estão no reino errado, ele é o “sortudo” que já nasceu ou escolheu o reino correto.

A (b) outra forma é difícil e pode resultar em um dos dois finais possíveis. (1) O investigador poderá, no final, adentrar para o reino que lhe dá segurança. A segurança obtida é decorrente de uma escolha consciente e (2) pode ser que o investigador descubra que tal reino divino não existe (pelo menos não na forma como desejaria que fosse...).

Como podemos concluir, existem duas possibilidades de habitar no reino divino e uma que exclui a existência de tal reino, sob a égide de um ente poderoso.

Para o realista, a busca ao reino divino é dura! De fato é penosa. Ele é sincero e sabe que o caminho iniciado é sem retorno. Ele poderá descobrir o “verdadeiro” reino ou simplesmente descobrir que ele é fruto do imaginário humano. Há que se ter coragem suficiente para seguir por esse tortuoso e estreito caminho.

Como sempre se soube, o caminho da verdade é íngreme, curvo, cheio de contratempos... Mas é o caminho da verdade e ele não promete um final feliz. Promete, sim, um final verdadeiro. Essa verdade é aquela mesma da qual muito se falou: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Qual verdade e qual liberdade? A verdade é aquela descompromissada e a liberdade é aquela que nos livra do jugo do erro.

O problema é que os “idealistas” querem que a verdade e a liberdade coadunem com o seu desejo e com sua fé. Complicado, não é? Quem não quer assim? Qual a pessoa que não deseja um reino divino à sua imagem e semelhança?

Amigo leitor: o reino divino existe. Ele pode ser real ou pode ser fruto da imaginação humana. O reino divino pode ser uma criação do todo poderoso ou pode ser engenharia da mente humana. Pode ser maravilhoso e pode ser “um sonho lindo que se foi...”

Uma coisa é certa: ele existe!
 
Enéias Teles Borges

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Fé cega e faca amolada

No mês de fevereiro de 2009 eu produzi um texto e o dividi em seis partes. O título "fé cega e faca amolada" trouxe muitos leitores para o blogue "Convictos ou Alienados?". O texto a seguir é a sua unificação.

Fé cega e faca amolada - I

Devo confessar que ando meio constrangido com a ação dos criacionistas em defesa de suas teses. Por que estou constrangido? Porque faço parte deste grupo que vê mais sentido na existência de um ser criador do que nas teorias contrárias a essa existência. De certa forma o criacionismo cego acaba empurrando as pessoas sérias na direção contrária ou no mínimo para as rédeas do agnosticismo.

A defesa do criacionismo tem sido feita por pessoas que não conseguem o revestimento da coerência em suas teses. No afã de defender seus pontos de vista acabam se escudando em fontes dúbias. Além disso é notório o uso de autores e textos longe dos propósitos originais. É lamentável!

Algumas instituições confessionais não têm “defensores” oficiais e uns e outros se postam como se fossem os baluartes da “sã doutrina”. Fazem a defesa em forma de “fé cega” e se servem de argumentos como se esses fossem “faca amolada”. As contradições soam gritantes! É possível ver uma pessoa defendendo o criacionismo cristão e ao mesmo tempo sendo admiradora do design inteligente.

O criacionista cristão é somente isso: criacionista cristão! Ele não pode se arvorar a fazer misturas como se um químico fosse! As correntes interpretativas não se misturam! São diferentes por natureza!

Tentar pinçar pontos de diferentes teorias para fundamentar a que foi eleita é, no mínimo, um ato leviano. Eis porque eu me sinto envergonhado de estar, ainda, nas fileiras do criacionismo. Cada ato insano afasta mais um, pois a insegurança quanto a uma teoria força o cidadão sério à busca da verdade. Não a achando só lhe resta o amplo manto agnóstico.

Será que esses de “fé cega e faca amolada” não percebem o quanto estão sendo inócuos, inúteis e blasfemos? Acreditam mesmo estar prestando algum bem ao advogar o criacionismo dessa maneira torpe?

Fé cega e faca amolada - II

Os que desejam ardorosamente o criacionismo como teoria viável precisam estar conscientes de que esse é apenas o primeiro passo. Em geral os que creem na “pujança” do criacionismo sentem a necessidade do segundo passo, que para eles é ainda mais importante: ter a convicção, pela fé, claro, que esse criador é um ser pessoal, que tenha criado tudo com um propósito, que veja o ser humano como sua obra prima e que tenha como objetivo precípuo resgatar os homens desse mundo vil, em decadência moral e natural. Claro que essa forma de ter fé é oriunda dos criacionistas cristãos. Nem vou considerar outros milhares de criacionistas com suas teorias vagas e igualmente sem fundamentação científica.

Aliás a questão científica está num segundo plano. O primeiro é o da fé. Quem assim age merece certo respeito. O problema, a meu ver, se atém aos que querem sedimentar sua crença criacionista via “ciências” de improviso e entre elas está o obtuso (como tem sido proposto) “design inteligente”. A tentativa de substantivar a teoria criacionista cristã com outras teorias de outras procedências tem sido o “calcanhar de Aquiles” dos hoje tidos como “xiitas da fé”.

Os fundamentalistas e/ou “pseudo-cientistas cristãos criacionistas” estão fabricando um monstrengo ao melhor estilo Dr. Frankenstein. Buscam o que consideram ser de melhor na teoria criacionista e fazem uma mistura explosiva com o que entendem de especialíssimo nas demais teorias. No final comportam-se como se tivessem descoberto a pólvora! Na realidade estão fabricando um monstro!

Por esse motivo eles têm deixado, de forma merecida, o posto de pensadores confiáveis. Estão se tornando insípidos, inodoros e incolores. Nem por isso devem ser tratados como se águas fossem. A não ser que possamos considerá-los como águas apodrecidas.

O grande problema é que a membresia de muitas agremiações religiosas é superficial e acredita em muita coisa, inclusive em duendes e em papai Noel. Acredita tanto nesses famigerados e falsos baluartes que outorga, ainda que tacitamente, o poder de representação.

As bobagens que são publicadas acabam ficando como opiniões oficiais de denominações seculares e sérias, mas que estão sendo apodrecidas sistematicamente pelos fundamentalistas malucos: alquimistas da ciência distorcida.

Fé Cega e Faca Amolada - III

Uma pergunta precisa ser feita: quem tem autoridade para defender o criacionismo? Parece uma pergunta óbvia, mas há que se notar os diferentes tipos de defesa dessa teoria. Aqui no Brasil tal postulação é feita pelos “criacionistas cristãos”. Para o cristão o criacionismo é conforme a Bíblia. O sagrado livro cristão tem dois testamentos: o velho e o novo. Aqui, por exemplo, já existe divergência com outro militante criacionista que é o Judaísmo. Os problemas, como podem notar são imensos! Os cristãos, que são ortodoxos por natureza, não advogam simplesmente o criacionismo. Protestam por uma adequação à interpretação de um livro que eles consideram sagrado e único. E os demais livros de outros criacionistas igualmente ortodoxos?

O que dizer de outros criacionistas atuais e do passado? É justo atribuir, aos criacionistas cristãos, martelo do julgamento? Há respeito às demais interpretações? A defesa feita por aqui não é “bairrista”?

Quero exemplificar o efeito do meu arrazoado. É claro que os criacionistas cristãos, num exercício de honestidade, deveriam ser claros em dizer que defendem o criacionismo à luz dos dois testamentos bíblicos. Não podem deixar de transparecer que essa forma de teorizar o criacionismo é exclusiva e não coaduna em cem por cento com as outras correntes.

Isso tem acontecido? Essa honestidade tem ficado clara?

Quero deixar aqui três links de textos criacionistas publicados no sítio Observatório da Imprensa. Atentem para a forma de defesa de cada texto e os comentários em cada um. Eu diria que ler os textos sem os comentários seria um exercício incompleto.

Os textos são: "Rivalidade ou mal entendido?" - "A Darwin o que é de Deus" - "Endeusando Darwin em clima de guerra".

Sugiro a leitura dos bons artigos e dos comentários. Tirem suas conclusões e perguntem a si mesmos: quem tem autoridade para defender o “criacionismo único”?

Fé cega e faca amolada - IV
 
Vencida a etapa do convencimento de que existe um criador vem, indubitavelmente, aquela que traz alento ao criacionista cristão: um deus pessoal e, portanto, cuidadoso e atento ao extremo. O criacionista cristão não defende o criacionismo simplesmente porque ele é o espelho da verdade. Defende porque quer vida em abundância. As teses criacionistas cristãs seriam ardorosamente defendidas sem essa bendita esperança? É possível enxergar um criacionista cristão que defenda suas teses apenas pelo compromisso com a verdade?

É bom considerar que a defesa do criacionismo sem objetivar qualquer recompensa seria ato de extraordinário altruísmo. Por outro lado a defesa de uma tese e em seguida o almejar constante pela “vida eterna” não seria expressão máxima de egocentrismo conjugado com egoísmo?

Sempre fico com uma dúvida imensa: a defesa do criacionismo é feita pelos comprometidos com a verdade ou por aqueles que não admitem a possibilidade do fim dessa miserável vida? Chamo a atenção para os criacionistas cristãos que se irmanam em torno dessa “verdade” e que fazem de sua vida uma rotina de supostas boas ações. Há algo de errado em tentar ser bom? Evidentemente que não! Mas qual é o objetivo primordial na busca incessante pelas boas maneiras? A recompensa que vem do cristianismo - uma das vias do criacionismo.

O problema que surge: no afã de desejar defender a própria pele muitos criacionistas cristãos se entregam numa luta insana contra aqueles que são ateus e os chamam de tolos e loucos! Os ateus instam em chamar, em contrapartida, tais criacionistas de medrosos, egoístas, egocêntricos e superficiais. Sim, superficiais! As teses criacionistas não descartam a fé como complemento das muitas lacunas. O uso da fé nessas lacunas causa incômodo imenso nos pensadores descompromissados com eternidade da vida pessoal. O confronto dos que têm fé com os que se escudam permanentemente e exclusivamente na ciência é embate sem nexo e com uso de “armas” diferentes e explosivamente desproporcionais...

Por outro lado os criacionistas cristãos não podem dispensar a fé. Tal fé preenche as muitas lacunas. Sem esse preenchimento não existirá um deus pessoal. E a existência desse ser cuidadoso é, sem dúvida, o grande agente motivador das teses das centenas de agremiações que se servem da “fé cega e da faca amolada”.

Fé cega e faca amolada - V

Por que destinei os textos da semana para esse tema “fé cega e faca amolada”? Possivelmente para ratificar o que venho dizendo sempre: essa peleja entre criacionistas e ateus é muito chata! Num primeiro momento parece ser algo captador de conhecimento e difusão de idéias. Logo adiante fica claro que é um embate inócuo em que armas de calibres diferentes são usadas. Não é possível mensurar resultados! Não se mede o alcance de cada um! O criacionista não apenas defende essa teoria e sim vê nela, sobretudo, a possibilidade de eternização da vida humana. Busca não apenas um criador. Busca, depois disso e principalmente, um ser pessoal, carinhoso, preocupado... O ateu não nutre esperança similar. Quer apenas o que chama de verdade, não se preocupando com vida eterna, simplesmente porque não crê nisso. É como se batalhasse contra uma alienação humana implementada pelos “preenchedores de lacunas”, via “fé cega e faca amolada”.

Não tenho a pretensão de sugerir o fim do debate. Mesmo porque essa voz, tão ínfima que é, jamais seria ouvida e, se fosse ouvida, seria desconsiderada. Ressalto que a defesa criacionista que abomino é essa dos “criacionistas cristãos”. Parecem “xiitas da fé”. Querem de todo modo que o mundo inteiro se curve diante dessa mistura que chamam de ciência criacionista.

Por hora paro, não sem antes sugerir a você que separou esse tempo para essa leitura: façamos parte de um grupo mais respeitador! Criacionistas, ateus ou agnósticos - não importa! Precisamos aceitar pontos de vista divergentes e analisá-los sempre! A verdade está lá, no lugar de costume. Tal verdade não mudará em função das análises humanas!

Pensemos nisso...

Sobre os textos "fé cega e faca amolada"...

Eu pretendia, pelo menos por enquanto, parar com esses textos. Acontece que recebi algumas mensagens, via correio eletrônico, que motivam algumas notas explicativas.

São elas:

1. Entendo que antes de questionar a arrumação da casa dos outros é mister arrumar a própria casa. Refiro-me aos criacionistas de uma forma geral. São vários segmentos criacionistas entre eles o judaísmo, o cristianismo e o islamismo - não podemos nos esquecer das religiões orientais, indígenas e incluir outras variantes do criacionismo. Até mesmo o darwinismo pode ser encaixado por aqui. Sabemos que Darwin se ateve à origem das espécies e não à origem da vida. Digito tudo isso para perguntar: qual a vertente do criacionismo é a correta? Existe alguma que seja? Como discutir o ateísmo sem primeiro arrumar a casa do criacionismo?

2. Como o meu foco foi o “criacionismo cristão” nem vou para os outros segmentos. Afinal qual o criacionismo cristão é tido como válido? O católico romano? O ortodoxo? O anglicano? O luterano? Aquele dos protestantes conservadores? Seria aquele dos cristãos carismáticos? Notem que as fórmulas apresentadas pelas correntes cristãs são diferentes em maior ou menor grau. A defesa do criacionismo por diversas agremiações cristãs tem sido feita de forma ponderada ou é na forma de um “proselitismo” disfarçado? Os criacionistas cristãos podem se insurgir contra o darwinismo e ateísmo sem primeiro arrumar a própria casa?

3. Recebi algumas perguntas por e-mail e uma me chamou particular atenção: “Seriam os criacionistas cristãos bitolados e sem capacidade de discernimento?” Notem que em nenhum momento do texto eu sugeri que o criacionismo seja algo “sem pé nem cabeça”, mas que a maneira como tem sido defendido é contraditória, superficial e irritante. Asseverei, inclusive, que determinadas pessoas “se investiram” de autoridade e falam como se fossem representantes do criacionismo cristão! Essas pessoas têm contribuído negativamente! A elas eu me dirigi em determinadas ocasiões solicitando que parassem com essas defesas obtusas, que só servem para pessoas muito simples e despidas de senso crítico...

4. Por fim eu deixo bem claro: as teses ateias não têm atraído adeptos. Criacionistas estão se tornando agnósticos e ateus por outro motivo: a fragilidade dos arrazoados dos criacionistas que defendem seus postulados de forma dúbia! Postulados que são repletos de contrafações e eivados de superficialidade asquerosa!

Meu compromisso é com a verdade e enquanto não a vislumbro, de forma segura, não me sirvo da “fé cega e da faca amolada” para me guarnecer.

Enquanto isso a guerra segue de forma desigual. As armas usadas são desproporcionais. Esse embate não trará qualquer resultado proveitoso...

Enéias Teles Borges - Autor
Teólogo e Advogado
-

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Fé: Indústria e Comércio

A postagem a seguir é resultante da somatória de três textos oriundos do blogue Convictos ou Alienados?, no ano de 2009.

Fé: Indústria e Comércio - I

A fé pode ser industrializada e depois comercializada? Muitos entendem que não. No mundo atual a difusão da fé tem crescido de forma absurda! São tantos, os aglomerados da fé, que é necessário um estudo pormenorizado de cada segmento para saber que tipo de produto está sendo oferecido à membresia. Como são formados os credos? Como são treinados os líderes? Como a doutrina precisa ser incutida? Como ter um diferencial para atrair adeptos?

A religião central do nosso enfoque é o cristianismo. Por hora apenas nele nos concentraremos. Por que o Brasil tem tantas igrejas e seitas? Quais os ingredientes do cardápio doutrinário de cada agremiação religiosa? Qual a maneira inteligente criada pelos núcleos para levar o fiel a acreditar que somente a sua agremiação tem a verdade?

Fé: Indústria e Comércio - II

O início de um movimento é suscitado pela crença ou pela esperteza. Com o passar do tempo a agremiação ganha corpo físico e corpo doutrinário. As doutrinas são incorporadas na medida em que os intelectuais do meio começam a apresentar teses de onde vieram (ou teses adaptadas). Nada se cria, tudo se copia e modifica. Com a explosão demográfica na instituição de fé outros mecanismos vão surgindo. Há necessidade de diversificação: mídia (TV e rádio), hospitais, educação e afins. O movimento transforma-se num conglomerado que junta bens e fiéis. Observem que acontece esse tipo de crescimento em todas. Todas mesmo!

Precisam surgir diferenciais. Por que ficar nesta e não naquela? A indústria da fé precisa agir com inteligência. Será necessário comercializar a produção de tal forma a levar o fiel a crer que está no único lugar correto. A produção de costumes na indústria da fé tem que ser na medida exata. Remédio em pequena quantidade produz dispersão e remédio em quantidade excessiva aniquila o paciente. Surgem os seminários que produzirão gerentes de ordens: pastores, bispos, padres, não importa o título. Os gerentes são os principais comerciantes no varejo da fé. Precisam ensinar a membresia a vender e atrair mais compradores que se tornarão vendedores... O que se vende? Uma teoria de fé cumulada com práticas específicas. A medida exata da difusão dos costumes e da doutrina levará o membro a se julgar um felizardo por estar no lugar certo.

Não existe outra forma de industrializar e comercializar. Não havendo um equilíbrio nos costumes e nas doutrinas a difusão dos produtos não trará os resultados ideais. Iniciar um projeto e não concluir propiciará uma debandada para outro conglomerado. Nos tempos atuais as instituições de fé estão em luta acirrada. Muitos produtos para poucos consumidores. Incentivos são instituídos e colocados nas mãos dos gerentes de ordem.

Na indústria e comércio da fé existem três tipos de indivíduos essenciais: os pensadores, os difusores e os absorvedores...
 
Fé: Indústria e Comércio - III
 
Na indústria e comércio da fé existem três tipos de indivíduos essenciais: os pensadores, os difusores e os absorvedores.

Os pensadores conduzem a indústria religiosa por meio da implementação da “teologia sistematizada”. Esta teologia precisa ficar entre muros e será modificada de forma gradual, de maneira a atravessar gerações. Uma visualização cautelosa da teologia sistemática de uma agremiação permitirá notar a diferença gritante entre o pensamento dos primeiros teólogos, quando comparado com o pensamento dos atuais. Esta adequação recebe várias expressões designativas tais como “adaptação ao momento histórico”, “revelação progressiva”, “repúdio à inspiração estática” e afins. É grandioso o trabalho executado pelos pensadores que são lotados em seminários, editoras, pontos estratégicos de elaboração e difusão. Eles dão o tom exato do conglomerado da fé, sempre atentos ao que acontece no mundo. A cultura religiosa não existiria sem eles.

Os difusores assumem a função de levar à mesa o alimento idealizado pelos pensadores. Função essencial pois sem este intermediário da fé as elucubrações dos pensadores não chegariam aos agentes de consumo (absorvedores). Os difusores dotados de senso crítico acurado são elevados à condição de pensadores ou sumariamente afastados. Difusor que pensa e questiona é promovido ou demitido. Não há possibilidade de um difusor que pense cumprir o papel de distribuir cardápios e pratos. O difusor bem preparado é o grande gerente (padre, pastor, bispo e leigo de alto conceito) que faz implementação da teologia sistemática criada e sempre adaptada pelos pensadores. É um trabalho hercúleo! Os difusores precisam crer piamente no que ensinam ou pelo menos fingir com eficácia. É irrelevante se o difusor seja crédulo ou incrédulo: o mister tem que ser cumprido rigorosamente conforme ditames dos pensadores. A cultura religiosa não seria difundida sem eles.

Os absorvedores são os alvos a serem alcançados. Não existiriam agremiações compostas apenas por pensadores e difusores. Faltaria o objeto principal para consumir os produtos industrializados e comercializados. A fé sem membresia não existe. A fé sem pessoas para seu efetivo exercício é figura inimaginável! Os absorvedores precisam ser tratados como ovelhas mansas e essencialmente crédulas. Não existe absorvedor questionador. O questionador é excluído do meio. Sua sagacidade não lhe permitiria ser um difusor. Não é permitido dar o grande salto! Impossível saltar do ofício de absorvedor para pensador. A função do absorvedor é consumir! Jamais produzir! Nunca comercializar! A cultura religiosa não seria consumida sem eles.

Fé: indústria e comércio. Simplesmente isto. Uma grande empresa elaborada (pensadores), apresentada (difusores) e amada (absorvedores). Eis um fato que poucos ousam admitir e que muitos insistem em não enxergar...

(Convictos ou Alienados?)
 
Enéias Teles Borges - Bacharel em Teologia e Advogado
-

sábado, 20 de novembro de 2010

A volta dos que não foram...

“Ficamos felizes com o seu retorno!” Já ouviram frase assim? Ela geralmente é dita às pessoas que depois de algum tempo aparecem lá na comunidade dos fiéis. É como se uma ovelha desgarrada voltasse ao redil. O redil é um meio impregnado de tradição e julgamento baseado em comportamentos padronizados.

Normalmente a resposta que deve ser dada, por aquele ser que se ausentou conscientemente, deveria ser: “Não retornei porque nunca fui. Nunca fui porque jamais estive...” É claro que estou me referindo ao engajado racional. O engajamento racional é aquele vivido por indivíduo que admite ter nascido num contexto, gostar dele, mas que não atribui a este modo de viver o título de ser o único. Único no sentido de que os demais carecem de legitimidade. É lógico concluir, portanto, que se os demais carecem de legitimidade resta apenas o único. O único é justamente o tal redil.

É preciso exercitar a coragem antes de afirmar: “Não retornei porque nunca fui. Nunca fui porque jamais estive...” Reagir assim é assumir racionalmente que existe a possibilidade de simplesmente (e ideologicamente) ter nascido no lugar errado, se é que existe tal lugar. Reagir desta forma é ter disposição para conceder aos outros a possibilidade da legitimidade. O engajado racional, observando que o contexto no qual cresceu é bom (socialmente), que nele cresceu e que a ele se acostumou, faz da frequência a tal contexto um ato de prazer. Não havendo prazer ele se afasta e um dia reaparecerá com uma esperança: a de que aquele meio tenha voltado a ser agradável.

O que torna um contexto agradável? O lugar, as pessoas, os objetivos comuns, o respeito e quetais... Viver num contexto bom não significa, necessariamente, abraçar sua ideologia religiosa. É admitir que em geral os ambientes vividos por famílias religiosas são bons, assim como são bons os ambientes habitados por pessoas não religiosas e respeitadoras das regras do bom viver social. É algo cultural! A religião sem engajamento racional é apenas uma cultura de cunho religioso sistematizado. Nada mais que isso! É óbvio que para concordar com a esta assertiva é preciso enxergar além dos muros do castelinho dourado...

Isto posto concluo: aquele que reaparece num contexto político-social-religioso não retornou ideologicamente pelo simples fato de que nunca dele se foi. Quem não foi jamais poderia retornar. E porque não foi? Porque ideologicamente jamais esteve.

É algo como “estar de corpo presente, mas com a alma distante...”


Enéias Teles Borges
-

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Deus: por onde começar?

Deus: por onde começar?
João Carlos Silva

Por onde começar a investigar filosoficamente o problema de Deus? Que questão deve ter prioridade sobre as outras? Saber se existe? Saber o que é? Ou saber se é possível conhecer alguma coisa a seu respeito?

À primeira vista, qualquer uma parece igualmente boa para começar, mas uma análise mais cuidadosa revela que não é assim. Rapidamente se descobrem prós e contras em todas e o optimismo inicial corre o risco de se converter em pessimismo céptico e paralisar a investigação. Analisemos cada uma com algum detalhe e vejamos onde isso nos conduz.

Admitamos, por hipótese, que é a primeira a melhor para iniciar: "Deus existe ou não?" Não é lógico que é esta a questão das questões, a primeira de todas, a que deve ser colocada e respondida antes de qualquer outra? Pois, se Deus não existir, que sentido faz continuar a colocar as outras questões? Nenhum, não é verdade?! Se não existir, a questão da sua identidade ou essência, bem como do nosso conhecimento dele, são questões vazias e absurdas; por isso, devemos decidir primeiro se Deus existe ou não e só depois perguntar o que é e o que podemos saber sobre ele, certo?

Errado! Pois, por outro lado, que sentido faz perguntar se Deus existe, sem sabermos o que ele é? Sem sabermos do que estamos a falar quando usamos a palavra "Deus", qual o seu significado? Nenhum, como é evidente! Não é absurdo perguntar se algo existe, sem que façamos a mínima ideia do que é esse algo? Portanto, talvez a segunda questão deva ter prioridade lógica e metodológica sobre as outras duas! Definir primeiro o objecto que se quer conhecer e só depois determinar se ele existe e pode ser conhecido ou não.

Mas também aqui podemos encontrar uma objecção a esta tese: como é possível determinar a identidade essencial de algo que se desconhece se existe ou sequer se pode ser conhecido? Determinar a essência de uma coisa ou ser não implicará um duplo compromisso ontológico e epistémico com a sua existência real e com a possibilidade de o conhecer? Dizer que X é igual a Y ou que pode ser caracterizado pelas propriedades A, B e C, não pressupõe a existência de X e o nosso conhecimento do mesmo? E como podemos nós afirmar a essência ou existência de algo sem que isso pressuponha ou implique o nosso conhecimento desse algo, precisamente da sua essência e/ou existência? Não será então mais acertado, e porventura a única via possível, começar com a terceira e última das questões, isto é, saber se podemos ou não conhecer algo sobre o objecto em causa?

Afinal é possível saber algo sobre Deus ou não? Só resolvendo isto, podemos e devemos avançar para as outras, já que uma resposta negativa a esta questão esvazia e impossibilita qualquer uma das outras; se nada podemos saber em relação a Deus, nem o que é nem se existe, resta-nos acatar humildemente a conhecida máxima lógico-filosófica segundo a qual devemos calar aquilo de que não podemos falar — mas aqui sem qualquer saída mística, simplesmente suspendendo todo o juízo sobre o objecto, por impossibilidade cognitiva radical!

Mas, uma vez mais, também aqui se pode descobrir um argumento contra tal tese: como podemos decidir que nada se pode saber sobre algo que desconhecemos? Não é isto absurdo? Afirmar que não podemos conhecer um objecto qualquer, real ou imaginário, concreto ou abstracto, possível ou actual, não implica saber ou acreditar que isso existe e o que isso é? Caso contrário, que legitimidade racional temos para defender tal ideia?

Mas então, se cada uma das questões parece reenviar para as outras, pressupondo-as e/ou implicando-as reciprocamente numa rede de interdependências, como desatar este nó lógico, como sair deste beco aparentemente sem saída da investigação filosófica sobre Deus? Haverá uma saída? Ou estamos condenados a mais uma aporia do começo, sem solução racional possível, a não ser o agnosticismo radical face a qualquer uma dessas questões e ao problema de Deus como um todo? Será que existe uma quarta questão que resolve o problema? Será a escolha arbitrária e o ponto de partida indiferente? Será a questão do começo uma falsa questão? Será possível atacá-las a todas ao mesmo tempo? Será a aporia real ou aparente? Como resolver este dilema, ou melhor, este trilema, uma vez que são três questões?

A solução existe e pode ser inspirada no engenho mítico de dois personagens históricos:

Alexandre e a história clássica do nó górdio e Colombo e o lendário problema do ovo! Analogamente ao corte do nó com a espada e à quebra da base do ovo, a solução da nossa perplexidade teológico-filosófica consiste na sua dissolução, isto é, em perceber que, na realidade, uma das questões pode e deve ser preferida às outras, porque uma das objecções que enfrenta não é, pura e simplesmente, correcta e assenta num equívoco que pode ser desfeito.

De facto, não só é possível, como é mesmo requisito prévio, indispensável a qualquer investigação, que se defina previamente, conceptualmente, o objecto a investigar, pois, caso contrário, não só não se saberia o que procurar, como, caso se descobrisse a resposta, nunca se saberia se era verdadeira ou falsa, dada a indefinição original quanto às condições necessárias ou suficientes que a mesma deveria satisfazer. Assim, a definição conceptual de Deus, a sua caracterização prévia como um ser com determinadas propriedades essenciais específicas (reconhecidas, aliás, salvo pequenas diferenças, por todas as religiões monoteístas e tanto por crentes como por ateus e agnósticos), é condição necessária para se inquirir quer a sua existência, quer a sua cognoscibilidade, e não implica qualquer compromisso ontológico ou epistémico, uma vez que se trata tão só de definir o significado de um termo, a forma como é usado, ou aquilo que queremos dizer quando falamos disso — em suma, o conceito de Deus.

"De que falamos quando falamos de Deus?" — eis a questão prioritária, que é, no fundo, outra maneira de perguntar o que é Deus, ou seja, a que tipo de ser corresponde o termo "Deus". Tal como inquirir se existem o Pai Natal, o rato Mickey, o super-homem ou o conde Drácula pressupõe tão só que saibamos do que estamos a falar — isto é, que conheçamos o significado desses termos — não implicando qualquer compromisso ontológico — isto é, não implica qualquer crença prévia na sua existência — também no caso de Deus isso acontece e fica assim claro qual deve ser a questão que deve iniciar a investigação.

-

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Saramago e a ficção de Deus

“Disse o insensato no seu coração: não há Deus.” Naturalmente, esta pouco misericordiosa denegação do homem como ser de razão, ou esta terrível ironia divina – como se tivesse adivinhado, como é do seu ofício, a futura ironia do meu amigo Saramago –, é posta no livro sagrado nos lábios mesmo de Deus. Apesar deste sarcasmo divino, os homens, na sua peripécia histórica, sempre disseram no seu coração – ou tiveram a tentação de o pensar –: “Não há Deus.”

Os mais peremptórios, em épocas que o permitiam, como no século XVIII e nos seguintes, assumiam essa negação de Deus chamando-se a si mesmos “ateus”. Na verdade, foram “os homens de Deus”, ou o mesmo Deus, como o texto bíblico o testemunha [Salmo 14 (13), 1; Salmo 53 (52), 1], que primeiro se separaram dos outros homens. Ou registaram a separação, marcando-a para séculos com um sinal de fogo.

O que designamos por “ateísmo”, na sua literal acepção, significa, geralmente, mais do que o seu conteúdo dialecticamente negativo. Denota um relacionamento de grau nulo com o referente Deus. É tão impensável ou inacessível na sua ordem como a pura transcendência, que é conteúdo real ou imaginário de Deus. Ser ateu é só ser e estar “sem Deus”. Perspectiva tão vertiginosa como a que a referência a Deus assinala, sob o modo de uma “ausência” tão impensável como a de Deus e não menos “abscôndita”, só que mais dolorosa, que a da presença das presenças. Ou, em termos de mera lógica humana, alguém que abdicou ou não encontra na ordem da existência, cósmica ou humana, qualquer razão ou motivo para lhe atribuir, na plenitude do termo, o que chamamos sentido e, muito menos, o Sentido de todos os sentidos.

Considerou-se ateu Espinoza porque, de maneira clara, assimilou Deus à Natureza, mas para outros, entre os quais Unamuno, passou por um “ébrio de Deus”. Tanto na tradição como na óptica moderna, considerou-se ateu e deve assim ser considerado o sujeito para quem “o nome” e, sob ele, a mesma ideia de Deus – não o seu conceito – não tem sentido algum. Embora, não sem pertinência, houvesse mais motivos para designar como “ateu” quem, precisamente, tivesse a pretensão de objectivar, ou de conceber claramente, o que ele mesmo chama Deus.

Nesse sentido, não haveria ateus mais perfeitos que os chamados teólogos, pelo menos os clássicos – anteriores a Karl Barth –, que sabiam tudo de Deus, ou que sabem tudo de Deus. José Saramago, autor de “Memorial do Convento” e do tão discutido – embora a meu ver não suficientemente discutido – “O Evangelho segundo Jesus Cristo”; proclamou-se simples e naturalmente ateu. Já veremos que, como Espinoza, é também unamunescamente, e à sua maneira, um “ébrio de Deus”. Quer dizer, uma das poucas criaturas que ainda se passeiam pelas ruas desertas deste mundo, que está solicitando de novo os anjos, como num filme de Wim Wenders, atento à interpretação que o estado do mundo, a memória do seu percurso, os enigmas da vida e os labirintos do desejo lhe provocam, decidido a converter toda a sua experiência em construções fabulosas para uso de uma Humanidade sem deuses nem Deus mas que só através delas se pode redimir.

O singular propósito de Saramago, o de inventar uma máquina de sonhos – de que o “Memorial...” pode ser o símbolo –, é a sua resposta a um mundo onde a imemorial utopia do Bem, nas suas versões antigas ou modernas, produziu frutos envenenados, o que deve ser refeito por uma espécie de nova Criação sem mais criador que a vontade humana, ou antes, a constelação mágica dessas vontades diversas actuando como se fossem uma só.

Para justificar esta nova leitura da aventura humana numa perspectiva ateísta não precisamos sequer de a filiar na longa história ocidental da contestação dos deuses ou de Deus que atravessa essa história como gesta da revelação cristã. E muito menos de a relacionar com a versão nietzschiana dessa contestação, tal como “O Anticristo” do autor de “Zaratrustra” autêntica e brutalmente a assumiu. Há no nosso mundo hispânico, ostensivamente crente, católico a “macha martillho”; como dizia Menéndez Pelayo, uma maneira de ser naturalmente ateia. Vejamos em que sentido.

Assim como Tertuliano dizia que a alma era “naturaliter christiana”, também a do autor do “Memorial...” ou de “A Segunda Vida de Francisco de Assis” e, sobretudo, do controverso “Evangelho...” é superlativamente ateia. Quer dizer, com um tal excesso que não só não esconde a ferida de onde nasce como um exorcismo como vive dela. A sua “cruzada contra Deus”, a espécie de western metafísico implacável em que a converteu, é filha de uma funda vivência, de uma humaníssima vulnerabilidade frente à universal e aterradora presença do Mal. Não tanto do chamado mal metafísico ou ôntico (se tal é possível), do mal como rosto humano. Não seria arriscado pensar que a manifestação desta presença – para além da sua vivência entre os outros – tenha adquirido a seus olhos a figura de um anti-Deus e, em seguida, de um não-Deus diante da ficção comum da Humanidade que chamamos História. Escrevo com maiúscula porque foi – parece-me – nesse espelho monstruoso e sublimado do nosso destino que os avatares do Mal adquiriram para ele esse estatuto mítico. Mas também porque no seu propósito de lutar contra as mais recorrentes formas do Mal – a injustiça, a prepotência, a opressão, a crueldade, o menosprezo da condição humana – foi na História como narrativa dos males, e sobretudo dos Males apresentados como Bens, que a sua imaginação banhou para inventar, através da sua revisitação, uma contra-História ou uma a-História. Aquela que é o palco onírico dos seus sonhos verdadeiros, os de Blimunda, de Bartolomeu, de Lídia, do mesmo Jesus de Nazaré.

José Saramago não foi o primeiro homem que leu esta história com assombro e com horror, como se fosse inventada – por um Hitchcock mais sádico do que o verdadeiro – para tirar o sono à Humanidade para sempre. Mas foi alguém que a leu como se fosse a primeira vez, que é assim que se lêem os livros que nos lêem. E então pensou e sentiu sem fim que Deus não se saía muito bem deste passo, remetendo para a culpa a responsabilidade dos males e do Mal para os sonhos dos homens, do Homem. Stendhal resolvera, em tempos, a questão por sua conta, mais lógica mas talvez menos profundamente, escrevendo que não se podia culpar Deus dos horrores de que a História está feita, porque não havia sujeito de culpa. Segundo ele, o Mal não tem sujeito por trás.

Saramago, mais sensível e português nisso, exigiu com todas as forças do seu coração e da sua vontade um Deus que assumisse os males que a narrativa bíblica imputa à desobediência humana e que um Deus bom devia ter impedido. Não são elucubrações teológicas as de Saramago – embora o autor do “Memorial...” seja um “teólogo” espontâneo –, mas apenas exigência existencial, resposta, se não grito de culpado inocente que inverte e subverte a essência do conto sagrado, substituindo-o por um conto puramente humano. Para isso, paradoxalmente, necessita daquele Deus em que não crê, como utopicamente se diz, mas em que crê superlativamente em termos de ficção, para dar sentido – e mesmo tornar possível – o processo de Deus como referente supremo da História. Quem pode separar o Deus da ficção da ficção de Deus?

Fonte: (snpcultura)
-

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Ensinando ou fazendo a cabeça?

Ensinando ou fazendo a cabeça? - I

Transmitir as convicções e temores é ensinamento? Seria uma forma perseverante de fazer a cabeça? Desde cedo (tenra idade) mostrar aos educandos que são “felizardos” (nasceram no lugar certo e no contexto certo) é um ensino efetivo ou uma transmissão sistematizada de conceitos próprios? Poderíamos usar a expressão “conceitos próprios” para os ensinos oriundos da tradição ou da não contestação?

Como diferenciar ensinamento de indução (fazer a cabeça)? É possível sugerir que pais e educadores, em nome do ensinamento, estão contribuindo para alienação em massa, tanto no campo efetivamente social quanto no religioso?

Ensinando ou fazendo a cabeça? - II

Num ponto os criacionistas e evolucionistas concordam: o ser humano é racional e essa característica o diferencia dos demais seres vivos terrestres. Para o evolucionista o uso da razão é uma constante (o que mais lhe restaria, a não ser raciocinar?). E para os criacionistas?

Entre os criacionistas existem aqueles que notadamente confundem “ensinar a usar a razão” com “condicionar comportamentos”. Já tratamos desses tópicos muitas vezes. A grande questão é que a herança contida no bojo dos pais e professores criacionistas tende a ser transmitida da mesma forma que foi recebida.

Já historiei um fato, ocorrido comigo, durante a faculdade de teologia em que um professor, não tendo argumentos para responder a uma pergunta simplesmente disse: “Assim aprendi, assim ensino...”.

Muitos pais e professores se julgam aptos para ensinar e não se dão conta de que simplesmente estão repassando adiante o que receberam e não questionaram. Estão com a “cabeça feita” e treinada para “fazer outras cabeças”.

O expediente, via frases padronizadas, é absurdo: “a especulação é o terreno encantado do diabo”, “quem pensa muito sofre demais”, “quem estuda demais começa a ter idéias bobas na cabeça”, “filosofia deixa as pessoas malucas”, “o aluno não tem competência para questionar professor” e por aí vai...

Quero dar sequência a esse tema geral trazendo ilustrações do dia-a-dia. É fenomenal como as pessoas se julgam grandes educadoras, sem saber, pelo menos, a essência do que julgam estar ensinando. Algo como cego que se julga com visão telescópica...

(Textos extraídos do blogue Convictos ou aliendados - Janeiro/2009)

Enéias Teles Borges - Autor
-

sábado, 25 de setembro de 2010

O medo abraçado com a esperança

O que move as pessoas que creem? A bendita esperança ou o medo da maldita desesperança? O que motiva esse povo? A esperança da prosperidade ou o medo da miséria? O que motiva os fiéis? A esperança do céu eterno ou o medo da morte eterna? O que faz os homens e mulheres de bem trilharem um caminho estreito? A esperança da atenção do Messias ou o medo da atenção do maligno?

A esperança e o medo andam de mãos dadas e é bem difícil saber qual dos dois motiva mais. Seriam os dois? Os fiéis agem com medo e com esperança?

Filosoficamente falando é razoável supor que os dois são os agentes motivadores. Não era Hobbes quem dizia que o homem vivia com medo da morte violenta e com a esperança da paz duradoura? Não é razoável presumir que os homens vivem com medo da morte eterna e a esperança da vida eterna?

Estaria o medo abraçado com a esperança?

Enéias Teles Borges - Autor
-

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A César o que é de César...

"Dizem-lhe eles: De César. Então ele lhes disse: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus."( Mateus 22:21)

Um conhecido meu, numa roda de amigos, dizia que não entendia porque algumas pessoas que não devolviam o dízimo. Perguntei-lhe: "Você o faz"? Ele respondeu: "Sim, devolvo, em média, mil e quinhentos reais por mês". Eu comentei: "Vale dizer que você tem resultados líquidos médios mensais de quinze mil reais, certo?" Ele respondeu: "Sim". Fiz outra pergunta: "Quanto você recolhe de imposto de renda, em média, por mês?" Resposta: "Nada. Meu contador tem um jeitinho e não pago".

Concluí, dizendo para ele e para todos os presentes: "Sabe porque muitas pessoas não devolvem o dízimo? Pelo mesmo motivo pelo qual você não recolhe imposto. À luz da interpretação bíblica a fidelidade compreende Deus e César". Emendei: "No seu caso, pelas alíquotas no Brasil, o valor do imposto de renda deveria ser maior que o valor do dízimo..."

Sei que estou chovendo no molhado. Sou advogado, teólogo e contador. Sei bem como a fidelidade é respeitada pela metade. Sei também como os que se dizem dizimistas apontam o dedo para os demais e quase sempre o dedo está sujo. Nunca ouvi um pregador, leigo ou pastor, pregar sobre a fidelidade e ensinar que é igualmente obrigatório o pagamento do imposto. Nunca ouvi dizer que as coisas feitas pela metade não agradam a deus. Nada contra o dízimo e sim a favor do imposto.

Não adianta dizer que não há reciprocidade do Governo. Quem disse que a obrigação de recolher imposto está vinculada a isso? Jesus, por acaso, questionou a tirania e corrupção de Roma? O dízimo deve ser devolvido simplesmente porque foi determinado, assim como ocorre com o imposto. Alguém quer questionar o sentido do verso bíblico, nos ensinamentos de Jesus?

Quem poderia explicar isso (procedimento cumprido pela metade), a não ser os membros da FCFA (Fé Cega e Faca Amolada)?


Enéias Teles Borges
-

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A apostasia e a verdade

A apostasia

Mudar de opinião é apostasia. Mudança de religião é apostasia. Entendemos apostasia como afastamento de uma maneira de pensar, de crer, da cultura religiosa na qual estivemos inseridos. O ser humano é um ser pensante e faz bem em usar a massa para decidir e para escolher ficar no lugar em que se encontra ou mudar para outro. Apostatar não faz mal. É resultante da razão humana e de sua capacidade para exercer o livre arbítrio.

A verdade

Existem muitas pessoas que confundem apostasia com afastamento da verdade. É normal, nos meios religiosos, ouvir frases como esta: "fulano apostatou da fé, afastou-se da verdade..." É um dizer preconceituoso ou oriundo de quem tem limitação em discernir. Sim, limitação em pensar e concluir que muitas vezes a apostasia de uma ideia pode ser uma aproximação da verdade - desde que aquela ideia anterior estivesse equivocada.

Apostatar não é incorrer em erro, não é fugir da verdade. A verdade e a apostasia podem estar de mãos dadas. Para isso precisamos entender a essência de seus significados.

Conclusão

Para aqueles que confundem apostasia com afastamento da verdade fica um recado importante. É bem melhor afastar-se de uma maneira de crer, de uma opinião, desde que seja de forma consciente, do que ficar no mundo hermeticamente fechado às razões da consciência e racionalidade humanas. Muitas vezes o apostatado saiu do contexto de fé, mas aproximou-se da verdade imutável.

A apostasia e a verdade precisam ser apreciadas à luz da razão e jamais entendidas à luz da fé cega e da faca amolada (FCFA).

Enéias Teles Borges
-

domingo, 1 de agosto de 2010

Caminhos de Deus?

O homem pobre

Um homem pobre, muito pobre, conseguiu um empréstimo bancário para pagar despesas médicas de uma pessoa de sua família. Nem imaginava como pagaria aquele compromisso. Conseguir o dinheiro fora um milagre. Seria o primeiro e talvez o último. Não teria condições de pagá-lo e teria seu nome incluído nas listas de restrições de crédito.

Quando se dirigia para casa, com o dinheiro, ele foi assaltado por um bandido que o espreitava desde que saira do banco. Desesperou-se. Estava endividado, sem o dinheiro do empréstimo e não teria como bancar as despesas médicas.

O assaltante

Alguém viu o assalto e chamou a polícia. Os policiais perseguiram o ladrão. Para escapar do flagrante o bandido jogou o envelope com o dinheiro no mato. Foi pego pela polícia, mas conseguiu mostrar que era inocente. E o produto do crime? Foi fácil ser liberado. Bastou contratar um advogado.

O sortudo

Um outro homem, de classe média, queria trocar de carro. Possuía um carro do ano anterior. Queria trocar, por um do ano. Andando pela estrada viu um pacote numa moita. Pegou, abriu e achou dinheiro. Suficiente para trocar de carro.

Moral da história

O homem pobre buscou consolo na fé. Disse para si mesmo: "deus sabe o que faz. Quem ficou com o dinheiro precisa mais do que eu..."

O assaltante rendeu graças a deus: "deus me iluminou. Joguei o dinheiro fora. Foi o anel, ficou o dedo. Estou livre..."

O homem de sorte deu um testemunho na igreja, contou sua história, falou de seu carro novo. Resumiu: "deus quer que sejamos a cabeça, nunca a cauda..."

Como podem ver cada um tem um deus conforme a sua necessidade, não é? Há um adágio polular que diz "deus manda o frio conforme o cobertor..." Para quem quer acreditar sempre haverá uma "justa" razão...

Enéias Teles Borges

-

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Um convite à reflexão

É possível pensar e depois investigar sem medo? Medo de ter que rever conceitos filosóficos e teológicos? As nossas convicções são oriundas de um zelo investigativo e do compromisso com a verdade? Tais convicções seriam resultantes de uma tradição familiar, social e religiosa?

Uma viagem pelo mundo do questionamento permitiria uma escolha justa entre a verdade e a mentira? O que é verdade? O que é mentira? A diligente busca e o compromisso com a verdade não poderiam levar o homem à decepção?

Um breve relato:

No ano de 1998 eu tive a oportunidade de conviver profissionalmente com uma pessoa muito inteligente e confusa quanto à vida. Permanecia, mesmo tendo ultrapassado a casa dos 40 anos, questionando tudo o que via e vivia. Perguntou-me se eu poderia ajudá-lo. Eu lhe disse que o presentearia com alguns livros que versavam sobre o tema.

Passados alguns dias ele me disse que não queria os livros. Perguntei: por quê?

A resposta não poderia ter sido pior: "sei que se eu ler esses livros haverá uma mudança radical em minha vida. Não quero isso. Não sei se tenho condições de mudar o meu jeito de ser nem quero. Assim está bom. Pode melhorar, mas pode piorar. Prefiro não me arriscar e continuar como estou...". Ele fez uma escolha. Optou por continuar com suas dúvidas e dilemas. O medo o impediu de avançar. Preferiu o quase conforto da dúvida. Considerou inviável dar um salto adiante. Os livros não seriam suficientes para mudar sua vida. Serviriam como símbolo de uma mudança. De uma conquista. Liberdade...

Muitos são o que são e fazem o que fazem por escolha pessoal. Outros não. Uns vivem a vida de forma convicta outros não. A convicção advém da busca e do compromisso exercidos de forma individual. Sem essa busca e comprometimento o que se tem é um comportamento típico do alienado, daquele que se tornou alheio a si mesmo. Há pessoas que não querem admitir a diferença existente entre a prática resultante da busca personalizada e aquela prática decorrente do que se assimilou de outras pessoas, sem qualquer crítica ou questionamento.

Podemos, finalmente, afirmar que existem pessoas efetivamente convictas? Existem pessoas rigorosamente alienadas?

Buscar, sem medo, resposta para essa inquietante pergunta é nosso maior objetivo.
 
 
Autor: Enéias Teles Borges
-

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Pensamentos confusos

“Mais vale um homem, todavia nunca, do que às vezes, sem comparação, talvez...”

Era o final do ano de 1985 e eu estava, com minha namorada e atual esposa, participando da excursão de formatura do SALT (Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia). Nosso destino era um acampamento em Itapema – SC. Passeio muito bom e que deixou saudades. Demos um giro por algumas cidades de Santa Catarina e do Paraná.

Um colega nosso, hoje pastor, ficou a viagem inteira repetindo esta frase supra. Frase usada para ilustrar palestrantes e pregadores que se serviam de mensagens “sem pé e sem cabeça” – mensagem de um confuso. Tal pensamento confuso era oriundo de oradores que faziam estudos e pesquisas superficiais e as transmitiam à membresia eclesiástica.

Pois é... Eu tenho ouvido muitas mensagens neo-pentecostais e de igrejas conservadoras que têm como resumo o título do presente texto: pensamentos confusos... O mundo está confuso, as mensagens são confusas e dirigidas a um público confuso que não se considera como tal.

Tenho reparado que as mensagens de hoje entram em contradição com as de ontem e que serão contraditórias em relação às futuras... Mas é como reina no mundo do faz de conta: cada público tem o orador que merece. Quem não se aprofunda merece receber, como se fosse um banquete, as mensagens rasteiras que são dirigidas aos ouvidos que se julgam atentos...

É chegado o final de semana e nele as agremiações, como sempre, pararão para ouvir. Será como sói acontecer: os supostos doutrinadores fingindo que doutrinam e os ouvintes fingindo que são doutrinados.

É o jogo do faz de conta recheado com pensamentos confusos...


Por Enéias Teles Borges
-

quinta-feira, 10 de junho de 2010

O Jesus histórico

O Jesus histórico
Enéias Teles Borges


Manuscritos, descobertas arqueológicas e uma mudança de mentalidade favorecem um avanço na reconstituição da Palestina de há 2.000 anos

Roberto Pompeu de Toledo

Não há quem desconheça esta história. Tem um presépio no começo, pregação e milagres no meio e, no fim, um trágico ato de solidão, humilhação e morte. Não há história mais contada, de geração em geração, mais dissecada nos livros, nem mais repisada, nas artes plásticas, nos últimos 2.000 anos. Conhecem-se detalhes ínfimos. Por exemplo, que havia um burro e urna vaca na gruta, no nascimento do menino. Quatro autorizados historiadores, Mateus, Marcos, Lucas e João, também chamados evangelistas, deixaram para nossa perpétua memória o registro de como se passaram as coisas. Por vezes tiveram mesmo o cuidado de enquadrar o relato central dentro de seu devido pano de fundo histórico, como Lucas, ao escrever que tudo começou quando o rei Herodes reinava na Judéia, sendo Quirino governador da Síria, e na ocasião em que Augusto, imperador de Roma, ordenou um censo universal. E assim poderíamos prosseguir, chegar ao fim do parágrafo em perfeita paz e excelsa glória e até encerrar o assunto por aqui, pois se a história é sobejamente conhecida não há o que acrescentar, se não fosse um detalhe: o que se concluiu até agora é falso.

Não há história mais cheia de furos, esta é a verdade. Os relatos são confusos, as zonas de sombra se sucedem, as contradições abundam. Caso se leia cada Evangelho por si, verticalmente, muito bem - cada história até que exibe certa coerência. O problema começa quando se parte para a leitura horizontal, comparando um com outro. Em Mateus, José é avisado por um anjo do próximo e auspicioso nascimento. Em Lucas, é com Maria que isso acontece. Em Mateus, o menino recém-nascido é visitado por reis magos, ou apenas "magos", como ele prefere. Já em Lucas quem o visita são pastores. Fez-se a conciliação no presépio juntando magos e pastores, e até acrescentando a eles uma vaquinha e um burrinho. Por falar nisso, de onde surgiram tais animais? Não há registro deles nos Evangelhos. A rigor, também não há registro de gruta ou estábulo. O que há é uma referência, em Lucas, a uma manjedoura, onde se colocou o bebê, "porque não havia lugar para eles na sala". O texto é obscuro, mas em todo caso fala em "sala", não em gruta ou estábulo, e dá a entender que se providenciou uma manjedoura à falta de berço, não mais que isso. O resto - uma noite passada no estábulo, à falta de alojamento na cidade, a vaca, o burro... esse resto é folclore. não registro dos Evangelhos.

Quando se compara os evangelistas com outras fontes, externas a eles, o resultado pode ser desastroso. Veja-se o caso do douto Lucas, quando dá suas coordenadas históricas - ele erra tudo. O rei Herodes, da Judéia, já havia morrido, quando Quirino passou a governar a Síria. Portanto, pelo simples e bom motivo de que não houve simultaneidade entre ambos os governos, nada pode ter acontecido quando um e outro governavam simultaneamente. E mais: não se tem notícia de censo universal algum ordenado por Augusto. É fácil concluir que estamos no meio de um cipoal. Que história era mesmo essa? Quem nasceu onde, e quando? Há enormes dificuldades, sim. Por vezes sentimo-nos perdidos na floresta, sem bússola. Mas há também uma boa notícia, para a qual se pede a gentileza da atenção do distinto público. Lá vai: nos últimos anos. tem-se registrado um notável progresso nas pesquisas sobre Jesus.

O que se vai abordar aqui é o Jesus histórico. Que isso fique claro, de uma vez por todas. Não é o Jesus teológico. Não é o Cristo dos altares. Tampouco é o Jesus de cada um. nascido no recôndito recanto da intimidade onde brota, ou não brota, a fé. O Jesus em questão é o que nasceu, viveu e morreu na Palestina, concretamente, num determinado período histórico. Sobre esse Jesus um dos maiores estudiosos do Novo Testamento neste século, senão o maior, o alemão Rudolf Bultmann, escreveu, nos anos 20: "...já não podemos conhecer qualquer coisa sobre a vida e a personalidade de Jesus, uma vez que as primitivas fontes cristãs não demonstram interesse por qualquer das duas coisas, sendo além disso fragmentárias e muitas vezes lendárias, e não existem outras fontes". Bultmann era pessimista, como se vê, a ponto de depor as armas, no que se refere à pesquisa histórica de Jesus. Compare-se agora sua afirmação com outra, formulada em 1985 por um respeitado especialista irlandês, E.P. Sanders: "A opinião predominante em nossos dias parece consistir em que podemos conhecer muito bem o que Jesus queria dizer, que podemos saber muito sobre o que ele disse..."

Que houve, entre os anos 20 e os 80, que aumentou assim a confiança nas pesquisas? Muita coisa: descobertas de manuscritos e sítios arqueológicos, uma nova mentalidade na abordagem do assunto, um rigor crescente. O otimismo que passou a contagiar os especialistas é ilustrado pelo fato de ser farta, e crescente, a produção intelectual no setor. A bibliografia é imensa. Este artigo se baseará em seis livros recentes, três saídos ou que sairão em breve no Brasil e outros três recém-publicados em língua inglesa. Um desses livros, cuja edição brasileira acaba de ser lançada, é Jesus no Judaísmo, de James H. Charlesworth, professor da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Depois de citar as opiniões acima transcritas, de Bultmann e Sanders, Charlesworth acrescenta, a respeito do avanço das pesquisas: "... o fugidio pano de fundo da vida de Jesus está agora muito mais claro do que era, mesmo há vinte anos".

Estamos num mundo de alta erudição. De gente capaz de mergulhar num papiro em hebraico ou grego antigo e voltar à tona misturando o resultado com os recursos da moderna antropologia. Sobretudo, estamos num mundo de obcecados, de estudiosos que consagram a vida a meditar sobre um só assunto, e dos quais se exige, entre outros talentos, um tirocínio de Sherlock Holmes. Tome-se o caso da análise do professor Joel B. Green de uni versículo que aparece em Mateus e também no chamado Evangelho de Pedro, um dos vários Evangelhos ditos apócrifos, de confecção considerada tardia, ou seja, já muito distanciada da morte de Jesus, e não reconhecidos pela Igreja. O versículo refere-se ao momento em que, com Jesus já morto e sepultado, os sacerdotes dizem a Pilatos: "Ordena pois que o sepulcro seja guardado com segurança até o terceiro dia, para que os discípulos não venham roubá-lo e depois digam ao povo: Ele ressuscitou dos mortos" (Mt 27:64). Mais especificamente, a questão repousa sobre um trecho que aparece idêntico, em Mateus e em Pedro: "...para que os discípulos não venham roubá-lo..." Quem copiou quem? Mateus copiou Pedro ou Pedro copiou Mateus?

Naturalmente, a dúvida só surgiu por conta de especialistas que passaram a sustentar a tese de que, ao contrário de se tratar de um texto tardio, ou seja, já do segundo século depois de Cristo, como em geral ocorre com os apócrifos, o Evangelho de Pedro seria um documento de alto valor, cronologicamente situado ainda à frente dos quatro Evangelhos oficiais, ou canônicos, que se considera escritos mais ou menos entre os anos 70 e 100 do século 1.

Green pegou aquele fiapo de frase, "para que os discípulos não venham roubá-lo", e se pôs ao trabalho. Descobriu que a palavra "discípulo" é comum em Mateus, que a usa 73 vezes, mais do que qualquer outro dos três evangelistas canônicos. Já no Evangelho de Pedro, não aparece nenhuma outra vez. O verbo "roubar" (klepto, no original grego) aparece quatro vezes em Mateus e, de novo, nenhuma em Pedro. Enfim, a preposição "para", no sentido de "a fim de" (mepote, em grego), aparece sete outras vezes em Mateus, e apenas uma outra em Pedro. Conclusão: o cacoete verbal, ou, para ser mais elegante, o "estilo", é de Mateus. Com toda a probabilidade, é ele a matriz. Pedro, ou seja lá quem for o autor que é chamado de "Pedro", já que nunca se tem certeza das atribuições de autoria, mesmo no caso dos quatro evangelistas consagrados, copiou-o. Portanto, seu Evangelho é posterior.

Separar entre a documentação antiga o que tem valor e o que não tem é uma das trabalheiras dos pesquisadores. O público leigo em geral tem fascinação pelos evangelhos apócrifos - a fascinação de entrar num território proibido. Eles são fascinantes mesmo, pelas extravagâncias que chegam a conter. Num deles, Jesus é um menino mágico que faz passarinhos de barro e, depois de bater palmas, põe-nos a voar. Noutro, Jesus, também menino, roga uma maldição e faz cair morta uma criança que o perseguia. Outra cena de infância é mais formidável ainda. Jesus quer brincar com um grupo de crianças, mas elas fogem dele e se refugiam numa casa. Jesus chega e pergunta à dona da casa onde estão as crianças. A dona da casa, para protegê-las, diz que ali não tem crianças. O barulho que ele está ouvindo em outro cômodo é de bodes. Jesus ordena então: "Deixa os bodes saírem". A mulher vai abrir a porta do cômodo e descobrir o quê? Bodes. Jesus transformara seus desafetos em bodes, de vingança, para horror da mulher.

Com uma ou outra exceção, os apócrifos são fáceis de descartar. Trata-se de coletâneas de histórias inventadas, algumas em meios populares onde a religião ainda mal se separava da feitiçaria. Tarefa muito mais complicada, a que todos os pesquisadores do Jesus histórico se dão, é tentar discernir, nos evangelhos canônicos, o que pode ser considerado realmente de Jesus e o que é elaboração posterior. Os canônicos foram escritos a uma distância entre quarenta e setenta anos da morte de Jesus por autores que possivelmente não foram testemunhas de primeira mão de sua vida. Mesmo no caso dos dois evangelistas que são incluídos no time original dos doze apóstolos, Mateus e João, é muito discutível se foram eles mesmos, ou pelos menos aqueles mesmos Mateus e João que conheceram Jesus, os autores dos textos.

Como saber o que é "histórico" em seus relatos? Os estudiosos utilizam-se de variados critérios. Um deles, óbvio, é o da múltipla atestação. Quanto mais um episódio, ou dito de Jesus, for repetido, pelos diferentes evangelistas, mais chance tem de ser verdadeiro. Outro, mais refinado, é o do embaraço. Se um determinado episódio era embaraçoso para as lucubrações teológicas dos primeiros cristãos, e mesmo assim foi conservado nos Evangelhos, é porque deve ser verdadeiro. É o caso do batismo de Jesus por João Batista. Foi muito difícil explicar às primeiras comunidades cristãs por que o superior, isto é, Jesus, havia se deixado batizar pelo interior, isto é, o Batista. Se foi assim, e apesar disso foi consagrado nos textos, então é porque o episódio deve ser verdadeiro.

O estudo lingüístico, que se viu na comparação entre os textos de Mateus e o Evangelho de Pedro, é um dos instrumentos que se tem para a pesquisa sobre Jesus. Outro são as descobertas arqueológicas. E entre elas nenhuma se iguala, em qualidade e fartura, aos chamados Manuscritos do Mar Morto, um conjunto de papiros achado a partir de 1947 nas cavernas da região de Qumram, no moderno Israel. e que até agora ainda não foram completamente restaurados e decifrados. Os Manuscritos do Mar Morto têm servido para muita coisa, nos últimos quarenta anos, inclusive para uma exploração sensacionalista que se situa, na imaginação popular, naquele perigoso terreno entre as previsões de Nostradamus e o segredo dos discos voadores. Na verdade, sabe-se hoje muito bem o que eles são. São uma antiga biblioteca, eis tudo - e é muito. Inclusive, no início dos anos 50, depois da descoberta dos manuscritos, escavações realizadas nas proximidades pelo padre francês Roland de Vaux trouxeram à luz uma construção que, destruída e queimada no ano 68 da nossa era, concluiu-se tratar-se sem dúvida de um antigo convento.

A partir daí formou-se um impressionante consenso entre os especialistas - nas cavernas, os membros da seita de Qumram esconderam a biblioteca do convento. Viviam-se os dias tempestuosos da revolta judaica contra o domínio romano que resultaria, no ano 70 da nossa era, na destruição de Jerusalém. Esconder os manuscritos, acondicionados em jarras, na iminência de um ataque romano que realmente viria a varrê-los do mapa, foi a maneira que os membros da seita encontraram de preservar seus documentos para a posteridade.

A seita em questão, muito provavelmente, é a dos essênios, cujo rastro encontra-se em muitos outros textos da antiguidade. Na biblioteca que eles esconderam nas cavernas há de livros do Velho Testamento a documentos específicos da seita, como o Manual de Disciplina, que era seguido por seus membros. Os documentos foram datados de um período que vai do ano 200 antes de Cristo até 67 depois. Ou seja: muitos deles são até contemporâneos de Jesus. Há centenas de textos completos e milhares de fragmentos, que vêm sendo pacientemente remontados por uma comissão na qual se misturam especialistas judeus e cristãos, sob a supervisão do governo israelense. Decepção: até agora, apesar de serem documentos da mesma época, não há nenhuma menção a Jesus. Isso não invalida, no entanto, o imenso valor dos textos de Qumram para o conhecimento da época e do ambiente que circundava Jesus. "Penetrar no mundo dos Manuscritos do Mar Morto equivale a mergulhar no tempo e no ambiente ideológico de Jesus", escreve Charlesworth, o já citado autor de Jesus no Judaísmo.

Os textos de Qumram revelam idéias muito próximas das de Jesus. Havia entre os membros da seita uma acentuada escatologia, por exemplo - isto é, como em Jesus, um alerta permanente contra o fim dos tempos, que se considerava iminente. Havia também uma total entrega a Deus. Esses e outros traços comuns configuram uma espécie de elo perdido do pensamento judaico entre os tempos do Velho Testamento e o advento da era cristã e sugerem entre um e outro uma transição menos abrupta do que se chegou a supor. A seita de Qumram também escancara a realidade de um judaísmo vibrante e variado, nos tempos de Jesus, tão pouco unitário que alguns autores hoje preferem falar em "judaísmos", não num judaísmo só. No entusiasmo das primeiras descobertas chegou-se a imaginar um Jesus fortemente influenciado pela doutrina dos essênios, quando não um membro da seita.

Na verdade, tanto quanto há semelhanças, há diferenças, a mais gritante das quais é a atitude perante as regras judaicas de conduta. Os essênios são ainda mais fanáticos que os fariseus na sua observância. Já Jesus, como se sabe, disse que o "sábado foi feito para o homem, não no homem para o sábado". Ele dava muito pouca importância ao rigor imobilista com que os ortodoxos mandavam guardar o dia santo, como de resto a todas as outras proibições e imposições rituais. Ou melhor: ele estava aí era para subvertê-las mesmo, num contínuo chamamento para a superioridade da pureza e da devoção interiores, não exteriores.

Em todo caso, há sinais de influência essênia em Jesus, uma das quais, relativa à expressão "pobres de espírito", uma das fórmulas enigmáticas de Jesus - a outra é "o Filho do Homem" -, configura uma conclusão de Charlesworth que se poderia classificar de espetacular. "Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus", diz a primeira das bem-aventuranças, do Sermão da Montanha (Mt 5:3). Que pobres de espírito serão esses? Eis a resposta de Charlesworth: pobres de espírito, bem como pobres, "são termos técnicos, usados pelos essênios para se descreverem". O autor cita um dos documentos de Qumram, o chamado Manuscrito da Guerra, para desfiar numerosos exemplos em que os essênios chamam-se a si próprios de pobres, ou pobres de espírito, identificados como "os perfeitos do caminho", que acabarão por derrotar os iníquos.

Outra importante descoberta de manuscritos, feita até um pouco antes, em 1945, ocorreu no Egito, na região de Nag Hammadi. Entre os 53 documentos ali encontrados, todos em copta, a língua falada no Egito, nos primeiros anos da cristandade, inclui-se o chamado Evangelho de Tomé, uma coleção de 114 ditos de Jesus, enfileirados, um atrás do outro, em que alguns vêem a tradução de um original semita talvez dos primeiros tempos. No setor das ruínas desenterradas ultimamente cite-se a casa de Cafarnaum, que Charlesworth, entre outros especialistas, está convencido tratar-se da casa de São Pedro referida nos Evangelhos, entre muitos outros motivos pelo fato de terem sido encontrados anzóis num dos seus compartimentos, exatamente um dos instrumentos de trabalho de seu presumível proprietário. "A descoberta é virtualmente inacreditável e sensacional", observa Charlesworth. Nessa casa Jesus hospedou-se e operou milagres, segundo os Evangelhos. Charlesworth enfatiza, extasiado, que com a descoberta da casa de Pedro tem-se "o mais antigo santuário cristão já desenterrado em qualquer parte".

Fique-se por aqui, embora houvesse ainda muito o que enumerar, em matéria de descobertas. Acrescente-se apenas que a elas juntou-se nos últimos anos uma nova e muito produtiva mentalidade, a de analisar Jesus à luz do ambiente, dos documentos e da cultura judaica em que, naturalmente, estava imerso, algo que, por mais óbvio, não se fazia, por preconceito ou rivalidade religiosa. A soma de tudo isso é auspiciosa. Um escritor inglês do qual adiante se falará mais extensamente. A.N. Wilson, autor de outra das obras saídas por estes dias - Jesus, a Life -, chega a afirmar: "O mundo de Jesus tem sido colocado num foco mais preciso por nossa geração do que por qualquer outra geração anterior, desde o ano de 70 desta era". O ano 70, como já se recordou, é o da arrasadora repressão promovida pelos romanos contra os judeus. De alguma forma, fisicamente, o mundo de Jesus morreu aí. Ao mesmo tempo, segundo prossegue Wilson, a fé católica enveredou por seu "caminho curioso", caracterizado por muito "pouco interesse nas origens semitas de Jesus e ainda menor conhecimento delas". Afinal, quem era Jesus? E por que incomodava tanto a ponto de ser condenado a morrer na cruz?


Nota: O artigo é de 1992, mas podemos dizer que é atual. O que se perde em ler e refletir?
-