terça-feira, 15 de maio de 2012

Milagres, preconceitos e negócios

Desde a primeira Constituição republicana, promulgada em 1891, o Brasil é um Estado laico. Ou seja, é uma nação oficialmente neutra em relação às questões religiosas, não apoiando e nem se opondo a nenhuma religião. Ao contrário do que muitos afirmam, reivindicar o cumprimento da laicidade estatal não é uma causa apenas de ateus e agnósticos. Vários religiosos também pleiteiam o Estado laico. Em seu livro Leviatã, o filósofo britânico Thomas Hobbes apontava que algumas afirmações de Jesus Cristo como “O meu reino não é deste mundo” e “Dai a César o que é de César e a Deus o que é Deus” traziam, explicitamente, a ideia de que assuntos religiosos não devem se misturar com a esfera pública. Ou seja, o próprio Messias, segundo o filósofo, defendia a separação entre Estado e igreja.

De acordo com a publicação A Sentinela, ligada às Testemunhas de Jeová, os cristãos verdadeiros devem seguir o exemplo de Jesus, que não se envolvia com política. Para dom Dimas Lara Barbosa, secretário-geral da CNBB, “a separação entre igreja e Estado, conquistada, no Brasil, com a proclamação da República, significou, para ambos, um ganho enorme em termos de autonomia e liberdade de ação”. Portanto, o Estado laico é uma aspiração dos cidadãos de bom senso, independente de convicções religiosas.

Entretanto, quando emissoras de televisão, que são concessões públicas, são utilizadas para promover determinados pastores evangélicos e suas igrejas, devemos nos preocupar. De acordo com uma reportagem de Paula Adamo Idoeta, publicada no site BBC Brasil, as igrejas evangélicas “adquirem cerca de 130 horas semanais nas grades de algumas das principais emissoras de TV abertas do país”. 

Pastor lançou um cartão de crédito 

O primeiro líder religioso que percebeu a importância da televisão para aumentar o número de fiéis foi Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus. No fim da década de 1980, ele adquiriu a concessão da Rede Record e, desde então, tem utilizado seu veículo de comunicação para divulgar a sua crença religiosa e atacar os seus desafetos. Nos cultos televisivos da Igreja Universal, muitos féis relatam que, após “encontrar Jesus”, abandonaram o vício em drogas, deixaram o mundo do crime e prosperaram em seus negócios. Porém, a questão torna-se extremamente controversa quando os pastores da igreja de Edir Macedo afirmam ser capazes de exorcizar demônios ou curar doenças crônicas.

Já Silas Malafaia, líder daAssembleia de Deus – Vitória em Cristo,é conhecido pelos gritos histéricos em suas pregações e por sua obsessão em atacar os homossexuais. Em um discurso contra o casamento homoafetivo, Malafaia chegou a comparar a homossexualidade à zoofilia e necrofilia. “Vamos colocar na lei tudo o que se imaginar. Quem tem relação com cachorro, vamos botar na lei. Eu vou apelar aqui. É um comportamento, vamos aceitar. Quem tem relação com cadáver, é um comportamento, vamos botar na lei”, disse o pastor sobre a legalização da união entre pessoas do mesmo sexo.

Por sua vez, R. R. Soares,fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, tem se mostrado um excelente homem de negócios. Conforme mencionado em uma reportagem do Estado de S.Paulo, o líder religioso é “dono de um patrimônio milionário que inclui, entre outros bens, gráficas, gravadoras, distribuidoras e emissoras de rádio e TV”. Em seu programa Show da Fé, R. R. Soares vende livros, revistas, CDs, DVDs e pacotes de TV por assinatura. Em consonância com o capitalismo financeiro, o pastor lançou recentemente um cartão de crédito. Não obstante, o fiel da Igreja Internacional da Graça de Deus pode pagar o seu dízimo via boleto bancário. Qualquer semelhança com Tim Tones, personagem de Chico Anysio, não é mera coincidência. 

Seria cômico se não fosse trágico 

Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, é o pastor evangélico que mais tem se destacado atualmente. “Parte do encanto de Valdemiro está na imagem messiânica que ele construiu em torno de si, contando histórias mirabolantes”, escreveram Mariana Sanches e Ricardo Mendonça na revista Época. Entre as grandes proezas do líder religioso, relatadas no livroO grande livramento, estão resistir à queda do oitavo andar de uma obra, sobreviver a um naufrágio, esquivar-se de uma tentativa de homicídio(os “matadores profissionais” erraram os cinco tiros) e sair ileso da explosão de uma mina terrestre.

Como não poderia deixar de ser, Valdemiro já curou paraplégicos, leprosos, aidéticos, tuberculosos, hansenianos, cegos, surdos e portadores de câncer. No entanto, o milagre mais espetacular foi relatado pelo pastor em uma entrevista concedida em 2009 à publicação evangélica Eclésia: “Uma das histórias que mais me impressionaram foi de um homem que morreu. Como se diz no Nordeste, ele estava na pedra. A família já tinha recebido atestado de óbito. A filha dele chegou em mim na igreja, me abraçou e disse: ‘Se o senhor disser que ele está vivo, ele viverá.’ O que houve ali foi pela fé dela. Comovido, respondi: ‘Então, está vivo.’ Quando ela voltou para casa, estavam se preparando para velar o corpo e receberam a notícia de que o homem havia voltado à vida. Os médicos tentaram justificar, mas não conseguiram entender como o coração dele voltou a bater. Foi uma ressurreição”, afirmou Valdemiro.

Diante dessa realidade, uma pergunta se torna inevitável: curar leprosos, fazer paraplégico andar, cego enxergar e ressuscitar mortos não lembra um famoso personagem monoteísta? Desde que o filho de um carpinteiro e de uma virgem caminhou sobre as águas na região da antiga Galileia, há quase dois mil anos, nunca se registram tantos milagres quanto os realizados pelos pastores evangélicos no Brasil neste início de século 21. Seria cômico se não fosse trágico.

[Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas, Brasil: Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de História e Geografia em Barbacena, MG]