segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Desespero, revolta e aceitação

Já li e ouvi de especialistas que o ser humano, diante da descoberta de um fato extremamente desagradável na vida passa por três fases: a do desespero diante da nova realidade descoberta, a da revolta porque isso está acontecendo e, diante da impossibilidade de mudar o enredo, passa para o momento da aceitação.

Passei por essas três fases na minha vida de cultura religiosa, que durante muito tempo acreditei que se tratava de religião.

Eu estava no primeiro semestre do segundo ano da faculdade de teologia, nos idos de 1983, quando comecei a me dar conta de que alguma coisa não estava muito correta. A pergunta que me fiz foi bem simples: “caso minha família fosse de outra denominação religiosa eu estaria aqui?” A resposta foi objetiva: “não, eu não estaria. É possível que eu estivesse em outra faculdade de teologia, não nessa...” Foi aí que comecei a encarar de frente a diferença entre cultura religiosa e religião.

Nos primeiros momentos (eu diria que anos) convivi com o desespero. A nova realidade aflorava de forma devastadora. Eu estava com 21 anos de idade e sozinho em minhas introspecções. Não era possível conversar com as pessoas. Certamente começariam a orar pela minha vida espiritual. Muitos diriam que eu estaria me apostatando da bendita fé. Conversar com quem? Meus pais, causando-lhes angústias? Colegas de classe, trazendo-lhes dúvidas? Professores do seminário, causando-lhes constrangimentos?

Concluí meu curso vivendo dia e noite esse enorme desespero. Não foi fácil conviver com isso, sozinho e durante muitos anos.

Em seguida veio o estado de revolta. Inicialmente contra a minha própria pessoa. Eu não conseguia me perdoar por tamanha ingenuidade! Sempre fui tido como um bom aluno e de bom raciocínio. Como fiquei tanto tempo sem enxergar o óbvio?

Minha revolta dirigiu-se à minha família. Por que em vez do ensinamento deu-me o condicionamento? Por que em vez de me ensinar a pensar induziu-me a crer via atos diariamente repetidos? Por quê?

Revoltei-me de forma violenta, dentro de mim, contra meus antigos professores. Pude constatar que vários deles estiveram ali simplesmente porque o emprego era bom. Aquelas capas de mestres eram vestes mentirosas. Muitos deles sequer acreditavam naquilo que ensinavam. Maldito o homem que confia no homem!

Revoltei-me contra tudo, mas assumi um compromisso: eu não praticaria a mesma violência contra meus futuros filhos. Eis algo que cumpri à risca...

Lembro-me de um momento quando eu tinha 12 anos de idade, isso em 1974. Eu estava meio abatido. O Brasil tinha perdido para a Holanda e para a Polônia na Copa do Mundo da Alemanha. Num culto de por de sol, numa sexta-feira, eu passei o culto inteiro de cabeça baixa, sem cantar e sem participar. Eu não tinha vontade. Depois que o culto terminou o meu pai obrigou-me a ficar com ele na sala. Constrangeu-me a ler um salmo e depois fazer uma oração. Vi nos olhos de minha mãe uma tristeza contra esse ato. Ela sempre foi mais serena quanto a esse tipo de assunto e forma repetitiva de cultos familiares vazios...

Fui para o quarto e com doze anos de idade eu assumi um compromisso de garoto: jamais faria assim com um filho meu. Estou com 46 anos de idade e mantenho, de forma firme, aquele compromisso quase pueril. Sinto-me bem assim. Sei que ensinar é diferente de condicionar.

Essa e muitas outras lembranças de minha vida vieram durante essa fase da revolta.

Recentemente encontrei-me com um dos meus antigos professores de teologia e fiz uma pergunta, sem deixar margem para embromação (afinal não sou mais seu aluno e não precisei me intimidar): “Sei que muito do que aprendi não era verdadeiro. O que quero saber é simples: quando aquelas aulas nos foram ministradas os professores sabiam que eram engodos ou, apesar dos títulos de mestres e doutores, também estavam sendo ludibriados?” Pasmem: ele me disse que de muitas coisas ele e outros não sabiam...

Hoje eu estou nos instantes finais da revolta e entrando no período (finalmente) da aceitação.

A receita que estou ministrando em minha vida é simples: a verdade está lá e é imutável. A verdade não mudará a despeito do que penso ou deixo de pensar, do que falo ou deixo de falar, do que desejo ou deixo de desejar. A verdade não mudará independentemente do que queira ou deixe de querer qualquer pessoa na face da terra!

A verdade pode até não ser aquela que muitos anelam, nem por isso deixará de ser a verdade. Eu não tenho que condicionar a verdade à minha vontade, mas devo aceitar a verdade como ela é (ou deve ser), ainda que eu não consiga vislumbrá-la em sua plenitude...

Assim vou me imiscuindo no mundo da aceitação. Nele tenho tido um pouco de sossego pois estou livre de regramentos desagradáveis. Não me preocupo com o que as pessoas pensem a respeito de minha “vida religiosa”. Até me considero num estágio superior quando me comparo com a maioria. Eu já assumi os três estágios. Sei que muitos indivíduos terão o encontro com essa realidade que me chocou. É apenas uma questão de tempo (e de coragem) para pensar de forma mais aberta...

Voltarei, muitas vezes, a esse assunto.

Enéias Teles Borges

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Religião ou cultura religiosa?

Por religião entendemos que é um serviço ou culto à divindade, sentimento consciente de dependência ou submissão que liga a criatura ao criador. Por cultura religiosa temos algo como um sistema de idéias, conhecimentos, de padrões de comportamento e atitudes que caracteriza uma determinada sociedade ou grupo.

No que tange à religião o que precisamos destacar é o “sentimento consciente” ao passo que na cultura religiosa é importante vislumbrar a essência caracterizadora de “padrões de comportamento”. O que nos leva a imaginar que o religioso, de maneira segura, é um pesquisador, um questionador sincero. É um observador que busca se desvencilhar de preconceitos para dar vazão ao assim chamado “sentimento consciente”. Na cultura religiosa não se busca fugir de conceitos preconcebidos. Ao contrário existe a insistência tenaz numa implementação sistematizada de “padrões de comportamento”.

Fica mais claro quando se simula um pouco da história político-religiosa: imaginemos vários países e que em cada um deles exista apenas uma forma de cultuar alguma divindade. Qualquer maneira de reverenciar uma divindade diferente seria terminantemente proibida. Num caso assim é natural supor que à medida que as pessoas fossem nascendo estariam incorporadas à religiosidade local. Poderíamos chamar isso de religião? Não seria uma cultura imposta por “padrões de comportamento”?

Assim acontecia na Europa após a reforma protestante. Em cada país uma tendência religiosa dominou de tal forma o pensamento que, quem nascesse naquela nação, seria automaticamente um membro do seguimento cultural-religioso ali estabelecido. O luteranismo cresceu em qual nação? E a crença anglicana? E a primazia católica romana?

Quando aconteceu o desbravamento da América o quadro obteve uma mudança significativa. Pessoas de países diferentes colonizaram aquelas terras. Nações diferentes? Sim e culturas religiosas também. Como não havia mais fronteira que impedisse a mistura das culturas religiosas, essas foram se fundindo e dando origem às diversas variantes. Muitas derivações! Hoje o quadro é impressionante, mas, sabe-se, explicável. São centenas de culturas religiosas pelo mundo afora que surgiram diante da mistura de pensamentos.

Tomando o Brasil como exemplo é óbvio supor que pelo ponto de vista estatístico é mais natural que aqui se nasça num lar católico, afinal é a igreja predominante. A cultura religiosa é implantada desde o nascimento e com muita ênfase. Justifica-se: crêem que até os sete anos as tendências de caráter estarão bem delineadas e torna-se fundamental a doutrinação que deve se estender desde os primeiros dias até o final da infância. Costumam chamar isso de “ensinar o caminho que se deva andar”, numa alusão ao contido no livro de Eclesiastes. Claro que é um caminho! O que não se sustenta é afirmar que isso é ministrar religião, pois não restam dúvidas de que existe um padrão de comportamento sistematizado em implementação constante.

A cultura religiosa tem como característica notável a arrogância. Mesmo aqueles que conhecem apenas um contexto social-religioso afirmam categoricamente que possuem a verdade. Algo que foge à realidade religiosa que é investigativa, sem preconceitos e atenta a assuntos novos. A cultura religiosa é irmã gêmea da ortodoxia. Não existe possibilidade de flexibilização. No caso de um segmento estar correto é cristalino que todos os demais estão no erro, eis o resumo e efeito desta forma de pensar e de agir.

A religião, por seu turno, não está adstrita a uma bandeira de fé e crença. Está compromissada com a verdade. Qual verdade? Eis a diferença do religioso para o que detém tão somente a cultura religiosa. O religioso não se arvora à condição de possuidor da verdade. Ao contrário está sempre exercendo a humildade da busca diligente. O filho da ortodoxia sempre parte do pressuposto de que está correto e que não há mais nada a ser investigado. O credo de sua comunidade político-religiosa é amplo e seguro na medida exata! Os demais credos estão eivados de erro. E a verdade? Qual delas? Cada segmento religioso tem a sua, claro.

Trata-se de assunto palpitante. Atrai de forma maravilhosa as pessoas compromissadas com a busca da verdade. Sim, aquela verdade eterna e imutável, que pode ser muito diferente de tudo que se possa ter imaginado.

Inauguro o blogue "Cultura e Religiosidade" com esse propósito: expor temas que procurem delinear a diferença existente entre religiosidade e cultura religiosa. A religiosidade como elemento de respeito às diferenças de pensamento, sejam de teístas ou de ateístas. E a cultura religiosa com seus propósitos proselitistas em frontal confronto com a essência do apostolado, num discurso que insiste numa base doutrinária hermeticamente fechada.

Serão mensagens esporádicas, mas pensadas com respeito e com a razão.

Um forte abraço.

Enéias Teles Borges